De bruços no asfalto, inconsciente, com dificuldade respiratória e apresentando sintomas e sinas de choque. A avaliação inicial demonstrou fraturas em membros inferiores e pelve além de ferimentos por todo o corpo com sinais de traumatismo craniano. Foi assim que o corpo de Karen, 31 anos, ficou depois que um motociclista furou o sinal vermelho no cruzamento da Max Hering com Antônio da Veiga e colidiu violentamente com a bicicleta em que ela pedalava na travessia da faixa de pedestres.
Enquanto Karen luta pela vida e seu caso ilustra as manchetes contabilizam-se outras colisões e ferimentos com ciclistas, mais de 500 pessoas pedalaram em protesto pela falta de segurança e o artigo 218 do CTB não existe em Blumenau. Até quando?
No trânsito deveria ser assim: o mais forte cuida do mais fraco e a vida humana continua a ser o alvo dessa proteção. Só que não foi assim para o Charles quando atravessa a faixa de pedestres na rua São Paulo próximo à Furb, na frente do IGP. Não foi assim para a Karen que depois de aguardar o sinal ficar vermelho para os carros é só subiu na bicicleta para atravessar a faixa.
Também não foi assim para o ciclista que bateu de frente com um veículo que saía de uma via transversal. Dessa vez o sinal estava aberto para os carros, só que no final contabiliza-se a colisão, a dor e a falta de segurança.
É só parar uns segundos para ver a diferença entre um veículo que pesa poucos quilos como é a bicicleta e quanto pesa um motorizado com cerca de, no mínimo, uma tonelada. Se for caminhonete, ônibus ou caminhão a comparação assusta quando se dá conta da fragilidade do corpo humano numa bicicleta.
O que está acontecendo?
Essa é a pergunta do milhão e que enquanto vai ficar sem resposta porque não se tem ações, programas e indicadores para avaliar e fazer um diagnóstico situacional da violência no trânsito de Blumenau.
Ações e programas educativos que levem aprendizagens de comportamentos seguros no trânsito são fundamentais e isso é diferente de uma ação localizada aqui ou ali.
Se os gestores da segurança no trânsito na cidade soubessem usar o espaço que eles têm com mídia paga ou espontânea fariam com que as mensagens para deslocamentos seguros chegassem a toda a população. Seriam insistentes, esclarecedores, orientariam para ações simples que salvam vidas.
Se houvesse articulação com a iniciativa privada, com o terceiro setor, com quem tenta fazer alguma coisa de forma ainda desarticulada todos se envolveriam e a população seria responsiva aos apelos por segurança.
O que está por trás dos comportamentos dos condutores e das colisões que vem demonstrando que o elemento velocidade e descaso com a fiscalização estão cada vez mais presentes no nosso dia a dia?
Essa pergunta só se responde com elementos concretos, analisando indicadores confiáveis que nunca tivemos porque segurança no trânsito ainda não é levada a sério como deveria para além dos discursos. Daí colhem-se este tipo de resultado.
Responsabilidades
É fato que os usuários do trânsito devem conhecer as suas responsabilidades, direitos e deveres no trânsito e cabe a eles a missão de cuidarem e protegerem as suas vidas nos deslocamentos. Afinal, quem vai parar na enfermaria ou no leito de UTI depois da colisão são eles.
Em uma entrevista por podcast ouvi o lamento de quem diz que não agüenta mais ser culpado por cada acidente que se registra na cidade. Eis aí uma excelente oportunidade para reunir os técnicos, os especialistas que cuidam da segurança no trânsito para analisar do ponto de vista técnico o que está acontecendo.
Se o elemento velocidade está presente nessas colisões e tragédias é um sinal de que já ou da hora de mudar a mentalidade sobre a fiscalização, começar a valer o artigo 218 do CTB e seus 3 incisos e de tomar medidas impopulares para com os motoristas,m mas que salvem vidas.
Será que se tivesse um sensor que registrasse a infração por furar sinal vermelho o condutor com baú de entrega na motocicleta teria avançado o sinal?
Será que se tivesse um fiscalizador de velocidade metros antes da faixa na rua São Paulo o Charles teria morrido enquanto atravessava a faixa?
Será que se tivesse ações e programas que levassem mensagens maciças de orientação à população para as curiosidades do Código de Trânsito e informações para deslocamentos seguros o ciclista que bateu de frente com o veículo teria feito diferente?
Afinal, onde existe ciclofaixa há espaços compartilhados com os veículos que precisam sair de uma via transversal ou lote lindeiro e isso o ciclista precisa observar.
Como esse usuário das vias pode ser esclarecido e orientado se ele não vai para a autoescola a não ser pela informação e pelo investimento em educação para o trânsito que é responsabilidade legal dos gestores na cidade?
Afinal, para quem não sabe está lá no artigo 21 do CTB no que compete também aos municípios: planejar, projetar, regulamentar e operar o trânsito de veículos, de pedestres e de animais, e promover o desenvolvimento da circulação e da segurança de ciclistas.
Some-se a isso implantar, manter e operar o sistema de sinalização, os dispositivos e os equipamentos de controle viário, além de coletar dados e elaborar estudos sobre os acidentes de trânsito e suas causas.
Falar nisso, como anda a implementação das medidas da Política Nacional de Trânsito e do Programa Nacional de Trânsito que também são atribuições do município e está lá no mesmo artigo 21 do CTB?
A segurança subiu no telhado
A segurança nas vias em Blumenau e em muitos lugares subiu no telhado faz tempo. Para muitos motoristas o ciclista é o cara que atrapalha e divide opiniões: alguns pedalam com segurança, vestem-se adequadamente, sinalizam suas bikes com os dispositivos refletores, colocam espelhinho, capacete, mas outros não.
Os projetos de segurança viária para ciclistas geralmente aparecem com destaque nas grandes obras: “olha, vai ter ciclofaixa e até ciclovia!”, mas só naquele local. Nos bairros, nas ruas sem espaços seguros para os ciclistas o quebra cabeça não encaixa.
Para piorar ou falta conhecimento ou sobra pessoalidade em algumas leis municipais e isso confunde a população, divide opiniões, prega a desinformação e deixa as pessoas ainda mais vulneráveis. Foi assim com a lei da “indústria da multa” que encorpa o costume da indústria dos infratores sem fiscalização e da impunidade.
Como se sancionam “leis” assim se antes o discurso era de fiscalização que salva vidas?
A conta vem
O único choro e lamento legítimo é o das vítimas que lutam por suas vidas e seus familiares. Sejam desamparados pela falta de ação para se cumprir e fazer cumprir a legislação de trânsito como é o caso do artigo 218 do CTB (fiscalização de velocidade) que não existe em Blumenau, seja por falta de ações e programas educativos que os orientem para as práticas seguras, todo mundo vai pagar essa conta.
Até para quem não concorda está no artigo 1º do CTB que o trânsito, em condições seguras, é um direito de todos e dever dos órgãos e entidades componentes do Sistema Nacional de Trânsito, a estes cabendo, no âmbito das respectivas competências, adotar as medidas destinadas a assegurar esse direito.
Os órgãos e entidades componentes do Sistema Nacional de Trânsito respondem, no âmbito das respectivas competências, objetivamente, por danos causados aos cidadãos em virtude de ação, omissão ou erro na execução e manutenção de programas, projetos e serviços que garantam o exercício do direito do trânsito seguro.
Os órgãos e entidades de trânsito pertencentes ao Sistema Nacional de Trânsito darão prioridade em suas ações à defesa da vida, nela incluída a preservação da saúde e do meio-ambiente.
Pontuadas as posições de cada um nesse salve-se quem puder é o que se vai fazer daqui para a frente é que vai mudar esse cenário. E esperamos que os ciclistas não fiquem de fora porque continuam sendo lembrados sazonalmente a cada vez que um ou mais de um deles é ferido com gravidade ou morto.
Segurança no trânsito é um problema de todos e algo precisa ser feito já ou da hora!
Márcia Pontes é escritora, colunista e digital influencer no segmento de formação de condutores, com três livros publicados. Graduada em Segurança no Trânsito pela Unisul, especialista em Direito de Trânsito pela Escola Superior Verbo Jurídico, especialista em Planejamento e Gestão do Trânsito pela Unicesumar. Consultora em projetos de segurança no trânsito e professora de condutas preventivas no trânsito. Vencedora do Prêmio Denatran 2013 na categoria Cidadania e vencedora do Prêmio Fenabrave 2016 em duas categorias.