Cemitério Dom Bosco, bairro de Perus, São Paulo. 4 de setembro de 1990.
Um dos dias mais pesados do Brasil após o período da ditadura militar. Era aberta a vala clandestina utilizada durante o período da repressão para enterro de corpos de pessoas indigentes, desconhecidas e daquelas consideradas opositoras do regime. Entre imprensa, autoridades e funcionários públicos do cemitério e de órgãos policiais, estava também presente o então bispo auxiliar de São Paulo.
Normalmente sorridente e de bom humor, acompanhava atônito e com uma inconfessável certeza do que havia lá a retirada dos ossos do espaço. Carregava na mala muito mais do que documentos episcopais, mas a velha curiosidade jornalística que o acompanhou quase que a vida toda.
“Estive com o vigário de Perus e ele me dizia que aqui nós tínhamos certeza de que havia presos políticos enterrados aqui. Inclusive, disse-me ele que levantaram a questão por um tempo mas não tínhamos possibilidades e ficou, afinal de contas, no esquecimento”.
Palavras estas de um calmo e comovido Dom Angélico Sândalo Bernardino ao microfone da TV Cultura naquele 1990, uma década antes de ser chamado como primeiro bispo diocesano de Blumenau. Aquele que primeiro trabalhou a frente de uma recém-criada diocese no Vale teve por aqui uma histórica rica, mas carregava já há muito tempo um cabedal de feitos ainda mais relevantes do que nossa Catedral pode presumir.
Conheci Dom Angélico ainda criança, quando o papo de Diocese era algo tão recente quanto. Sobrinho/afilhado de batismo do saudoso Diácono Harry Boos OFS, tinha a então Igreja Matriz de São Paulo Apóstolo – elevada a Catedral naquele ano 2000 – quase como uma parte de casa. Quase mergulhei na vida diaconal, mas fiquei mesmo como um curioso entrando na sacristia no fim da missa de domingo a noite e iniciando-me na lida da Paixão de Cristo em cada Páscoa, por incentivo do Tio Harry.
Falar sobre Diocese, igreja e sacerdotes célebres na região era corriqueiro em casa. Filho mais novo do diácono, o doutor em biologia Harry Boos Jr. tinha como padrinho de batismo ninguém menos que o saudoso bispo emérito de Lages, Dom Oneres Marchiori, e visitar o velho lageano na casa de praia, em Navegantes, era um de nossos programas de férias. Logo, uma visita de Dom Angélico ou um contato até mais próximo não era nada de se espantar.
Um dia, ele foi até em casa. Trajava uma roupa social simples e um casaquinho verde de lã. Minha mãe fazia toda a pompa de “arrumar o filho para receber o bispo” tal como uma cidade do interior. Sargento Junkes talvez saiba disso hoje, mas fomos os primeiros do Reino a receber uma visita domiciliar do então bispo diocesano em casa, distribuindo sorrisos próprios de um paulista interiorano bem solto e humorado.
Alias, em um canto do mundo onde dizer que o genótipo é frio e fechado (o que não representa este jornalista e a maioria dos que me leem), ter um cidadão vindo “de fora” com bom humor e a frente da igreja sempre suscita algo bom. No período que esteve por aqui, Dom Angélico pareceu fazer a velha Catedral uma casa ainda mais receptiva e mais mansa do que antes, onde uma Blumenau na totalidade pudesse entrar independente de que ponta da cidade você viesse.
Mas esta necessidade de acolher o povo como um todo foi uma constante na vida de Dom Angélico, e o seu ado por vezes tão vilipendiado pela burra polarização atual não deixa-o mentir. Paulista de Piracicaba, do pacato distrito de Saltinho, filho de Duilio Bernardino e Catarina Sândalo e descendente de imigrantes italiano, o “Dom dos Pobres” como era conhecido teve infância simples mas logo voltada ao conhecimento da igreja.
No entanto, entre a filosofia e a teologia que o marcaram nos estudos, também estavam livros e conhecimentos de jornalismo, faculdade que cursara em Ribeirão Preto. Ao mesmo tempo que o trabalho sacerdotal lhe consumia, também tinha verve na comunicação, chegando a ser diretor de jornal. Não a toa, esta mescla fez plantar na repressão da ainda incipiente ditadura a suposição de Angélico ser membro da luta armada, investigação arquivada em 1969 por falta de provas (claro).
A relação igreja e estado não eram das melhores, com denuncias de perseguição a padres e elementos da igreja simplesmente pelo trabalho junto as classes menos favorecidas ou, como os anos fizeram surgir, os ditos “órfãos do milagre”, deixados a margem diante do propalado milagre econômico propagandeado pelo regime no início dos anos 1970. E quem estivesse, dentro da igreja, ao lado dos mais pobres já tinha uma marcação de vigia diante da repressão.
E assim seria para Dom Angélico durante, praticamente, toda a década. Nomeado bispo-auxiliar paulistano em dezembro de 1974, estava na linha de frente da igreja no estado, ao lado de outro dos nomes mais visado pelo regime: o cardeal Dom Paulo Evaristo Arns. Esteve na ala mais progressista, a que não baixava o dedo quando o assunto eram as classes de trabalhadores, os mais pobres e a tão sonhada redemocratização do país ainda imerso no regime, pautas que caíam também no jornal “O São Paulo”, da arquidioceses paulista, da qual foi diretor.
E não eram raras as vezes em que seus sermões eram vigiados ou seus movimentos eram acompanhados de perto por agentes da repressão. Acusou estes de utilizar “métodos bárbaros” para “arrancar confissões” ou quando lembrou em sermão da morte do operário Manoel Fiel Filho nas instalações do pavoroso DOI-CODI. Até mesmo a contestação por um sinal ferroviário junto a negligente RFFSA após um grave acidente foi mais uma das “ousadias” que cometera pelo bem coletivo e para suspeitas apavoradas dos vigilantes constantes.
O trabalho junto as classes de trabalhadores e operários o levou também a estar no turbilhão das Greves do ABC, no fim dos anos 1970, onde se aproximou de lideranças sindicais como Luiz Inácio Lula da Silva. Anos mais tarde, esteve Dom Angélico, a pedido do próprio, como celebrante do velório da primeira mulher do presidente, Marisa Leticia (2018), e do casamento de Lula com Janja Lula da Silva, em 2022.
É presumível que toda uma trajetória ligada aos movimentos sociais, trabalhadores, aos mais pobres e na contestação dos métodos cruéis e da intransigência do regime militar levaram o nome de Dom Angélico a ficar estampado como um “inimigo” por tantos no Vale do Itajaí até mesmo durante o seu episcopado. Muitos, sem exagero, evitam falar ou até criticam ferozmente o bispo por estas questões, críticas que não escaparam a infeliz ignorância das redes sociais que mascaram agressores e falas obscenas na mistura de igreja com política em busca da “verdade conveniente”.
Uma mistura que não fazia diferença a Angélico, como ele mesmo dizia dando de ombros as ditas “patrulhas ideológicas” ou mesmo lembrando dos críticos infundados de plantão que margeavam seu trabalho pastoral e social pelas relações que tinha ao seu redor. “A Igreja nunca teve partido político. Nós saíamos com o povo reivindicando creche, escola e hospital. Essa era a nossa subversão. “Nos chamavam de comunistas, mas só estávamos ao lado dos trabalhadores.”, disse certa vez.
Ao chegar em Blumenau e assumir a recém-criada Diocese em junho de 2000, poucos podiam perceber o tamanho do caminho que este paulista teve para pousar por aqui e iniciar um trabalho pioneiro e necessário. Desmembrada da regional de ville, a “capital da cerveja” podia tornar mais céleres suas decisões e as paróquias da região tinham ainda mais proximidade no trabalho pastoral do que outrora.
A partida de Dom Angélico, em 2009, foi a aposentadoria merecida de uma longa jornada marcada pela proximidade legítima junto ao povo de todas as classes, pensamentos, opções e formações, alias este o verdadeiro motivador da igreja em todas as partes (presume-se que o seja). E não apenas como um servil operário do catolicismo, mas também com o mesmo dedo do jornalismo que desvenda os erros e busca as soluções pela pena que lhe foi dada.
Sabemos tão pouco de Dom Angélico mesmo que, nos circulos de história de Blumenau, ele tenha um lugar relevante mas não com o mérito que realmente ele merece, justo pelo tamanho da estrada que percorreu até cair na tão corrida Blumenau para o trabalho a qual foi designado.
Cada um que tenha seus contras e suas repelências, seja de filosofia ou de afinidade, mas certo é que este paulista marcou por aqui e seu espaço no livro de história blumenauense é bem mais do que uma simples página. Na cidade dos pioneiros de tantas coisas, o pioneiro diocesano fez algo e montou tudo, e esta página cabe ao jornalista e bispo Angélico Sândalo Bernardino, que está lá na cripta repousando sob seu pioneirismo.
O resto, é conversa aleatória. Não se apaga com terra de vala comum a memória de quem contestou o erro, seguiu a cartilha da igreja junto aos pobres e, tudo isto, sem esquecer o cajado, a maquina de escrever e um sorriso interiorano.
A benção, Dom Angélico!
(Abaixo, material da TV Cultura: A reportagem do falecimento e o Roda Viva com Dom Angélico, em 2013)